O Menino que Via as Mulheres
Uma edição belíssima, um título encantador! São as primeiras impressões ao pegar um exemplar desta obra.
O Menino que Via as Mulheres é o primeiro romance do professor e escritor José França, que também é autor das obras poéticas Amor em Tempos de Guerra, Versos Pós-Modernos e Viagem ao Kamathom.
Desde as primeiras páginas, percebe-se que este romance é intenso – uma narrativa que não dá muito espaço para o leitor respirar, tamanha a força dos acontecimentos. Ao mesmo tempo, não é um livro para ser lido de uma só vez: é para ser ruminado, digerido, pesquisado. Ao contrário do que o título pode sugerir, a história, que em suas páginas iniciais parece ingênua e carregada de ternura, revela-se densa e nada simplória. É impossível, por exemplo, ao final do capítulo “Um Rosário de Fogo”, continuar a leitura com a mesma leveza, sem ter sido profundamente tocado.
A trama gira em torno dos adolescentes André e Sophia, cujos destinos se entrelaçam no dia em que, após uma tempestade, ele encontra um filhote de coruja e, a caminho de casa, pede um copo d’água na residência da gentil menina. No momento desse primeiro encontro, nenhum dos dois poderia imaginar que, antes do fim do dia, ocorreria um grave acidente; que André realizaria o parto da própria mãe, trazendo à vida sua irmã, Andreya; e que os três seriam socorridos justamente por Sophia e sua mãe.
Não, não há spoiler aqui! Podem ficar tranquilos.
O trauma do acidente, somado à experiência extrema de ter realizado o parto da irmã, às complicações da saúde da mãe no pós-parto e aos desdobramentos que se seguem, trará consequências profundas para André. Por mais resiliente que se mostre, suas bases emocionais serão abaladas.
Antes de abordar o tema central do livro, vale destacar que o autor – atual presidente da Academia Luziense de Letras e Artes (ALUZ) – é graduado em Letras pela PUC-MG, em Filosofia, pela UFMG, e pós-graduado em Leitura e Literatura pela Faculdade de Pedro Leopoldo (MG). O leitor mais atento notará que o protagonista do romance nutre uma predileção pelas aulas de História e é um aluno dedicado à pesquisa e à busca pelo conhecimento. Já é possível perceber onde essa fusão escritor e personagem nos levará?
Sim! Todo o saber acumulado por José França ao longo de seus anos de estudos e das mais de três décadas de experiência como docente, convivendo e observando adolescentes com suas alegrias e dramas, oferece o tempero ideal ao enredo fantástico-realista da obra.
A narrativa é conduzida, em alternância entre primeira e terceira pessoas, pela coruja resgatada por André. Esse arranjo se justifica pela escolha desse animal como um personagem central da história. A coruja, símbolo milenar de sabedoria em diversas culturas, representa o mistério, a inteligência e a capacidade de enxergar na escuridão – metáfora da reflexão e do conhecimento. Na mitologia grega, está associada à deusa Atena, símbolo da sabedoria adquirida pela experiência. Assim, como em toda boa história fantástica, o racional cede espaço à imaginação, e a coruja narra os acontecimentos, mesmo aqueles de que não participa diretamente.
Após o acidente, Analyce, mãe André, entra em coma e é hospitalizada. Nem os parentes maternos, nem o seu pai, seu João – que já vivia outra relação – se dispõem a acolher os irmãos. Coube então a Márcia, mãe de Sophia, receber em sua casa o bebê, o adolescente e o inseparável filhote de coruja, já o xodó da dupla.
A partir daí, tudo se transforma. Um acidente com transporte clandestino, uma mulher grávida dando à luz pelas mãos do próprio filho de treze anos, que horas antes havia salvado uma coruja... Um prato cheio para a mídia! Enquanto Analyce permanece em coma, a vida de André sofre uma reviravolta, envolvendo também Sophia, Andreya, a coruja e Márcia, que passa a administrar essa nova e inusitada realidade.
André e Sophia se tornam notícia e viralizam: ele, por motivos óbvios; ela, por ter pedido à mãe que parasse o carro para ajudar o menino que acenava na estrada. Como já sabemos, nesta era de internet e celebridades instantâneas, tudo muda rapidamente — e com eles não foi diferente.
Ao mesmo tempo em que chegavam doações, também surgiram convites para programas de TV, contratos de publicidade, bolsas de estudo e até uma proposta de carreira artística para Sophia, que cantava e tocava diversos instrumentos — tudo apareceu como num passe de mágica. E eles, sob orientação de Márcia e uma competente equipe, aproveitavam todas as oportunidades que fosse possível.
Mas, como nem só de flores se faz um jardim, logo surgiram os espinhos. Além de enfrentar a ausência da mãe hospitalizada e um relacionamento cheio de lacunas com o pai, André se vê envolvido em uma disputa judicial pela guarda dele e da irmã. As tias, percebendo as possibilidades de sucesso e visibilidade, passam a disputar a convivência com os sobrinhos.
Para alguém tão jovem, tudo isso foi avassalador. André começa a ter visões que surgem nos momentos mais inesperados e duram alguns minutos. Nelas, contempla o sofrimento das mulheres ao longo da história — cenas brutais que o paralisam, deixando-o completamente estático, enquanto presencia torturas das mais diversas épocas e culturas.
É possível que muitos leitores desconheçam os fatos retratados nas visões de André. É justamente aí que o autor utiliza seu conhecimento para instigar a curiosidade e a busca pelo saber. O leitor atento, ao perceber que os eventos são verídicos, poderá sentir-se convidado à pesquisa, aprofundando-se nos contextos históricos dos fatos narrados.
Sophia torna-se testemunha dessas dolorosas experiências. Na maioria das vezes, ela presencia os momentos em que André fica paralisado. As visões o afetam tão profundamente que ele passa a somatizar os sofrimentos observados, sentindo cheiros, frio ou calor, conforme a natureza do sofrimento a que assiste.
Ser o protagonista do nascimento da irmã, presenciar o sofrimento da mãe e conviver com visões perturbadoras leva André a desenvolver uma consciência emocional madura — e, ao mesmo tempo, bela — em relação às mulheres. Após uma das visões, enquanto se recompõe com um copo d’água oferecido por Sophia, ele a observa e reflete:
“... Naquele momento, o pensamento o entristeceu: o corpo de Sophia devia ser igual o daquelas meninas. Sentiu uma dor tão forte que teve de se esforçar para não chorar.
Sophia nascera no mundo pós-moderno. Aquelas meninas não. Elas pagavam um preço alto por terem nascido mulheres, como se fosse dado a elas o direito de escolha. Pagavam o alto preço da ignorância dos homens e da história construída por eles.” (pag. 162)
Pensar na pós-modernidade de Sophia leva André a perceber que, em outros tempos, sua mãe jamais poderia ter sido uma mulher separada, com um trabalho, criando um filho sozinha enquanto carregava outro no ventre. Ainda assim, diante de tantas adversidades, Analyce foi uma mulher inteira, digna em sua coragem silenciosa. Márcia, por sua vez, talvez não tivesse sequer a chance de sonhar — quanto mais de contrariar a família, dizer “não” a uma proposta absurda do namorado, tomar as rédeas da própria vida e, sozinha, criar a filha que viria a ser sua luz, enquanto construía uma carreira de sucesso. Hoje, Sophia pode sonhar o próprio futuro com os olhos abertos, e André sabe: o caminho de cada mulher é feito também de dor, marcado pelo sangue de muitas outras que tombaram ao longo da história humana.
No meio dessa montanha-russa emocional, nasce mais um sentimento: um amor puro e intenso entre Sophia e André — inevitável diante da magia da adolescência.
O romance, com notas picantes da descoberta da sexualidade, típicas dessa fase, é o tempero especial que permeia a narrativa. Para traduzir a intensidade desse amor, o autor recorre à poesia, pois só ela é capaz de traduzir tal sentimento:
“Olharam um para o outro e sorriram. E eu até hoje espero ver um sorriso tão puro e tão misterioso como aquele. Um rindo para o outro como se só os dois existissem no mundo e não houvesse mais tempo. Ali habitou a eternidade. A eternidade fixada em pequenos momentos.” (pag. 458)
A paixão efervescente e as visões tornam-se segredos compartilhados apenas entre eles, que optam por não revelar nada a Márcia.
José França explora, com sensibilidade, a insegurança característica da adolescência, especialmente nos diálogos entre os jovens, como no décimo segundo capítulo, em uma noite de insônia e ansiedade.
Para ler esta obra fantástica, precisei resgatar o adolescente que fui. É o tipo de leitura que me fazia sonhar e, por meio da admiração pelos personagens, acreditar na possibilidade de realizar desejos.
Essa é, talvez, a maior magia de “O Menino que Via as Mulheres”: adolescentes que tiverem o privilégio de lê-lo sentirão vontade de pesquisar os eventos históricos, aprender a tocar algum instrumento, assistir aos filmes, ouvir as músicas e ler os livros mencionados pelos personagens. Nunca mais verão uma coruja com os mesmos olhos — e talvez despertem um amor pela natureza até então adormecido. Pais de adolescentes passarão a observar com mais atenção o jeito misterioso dos filhos. Nem tudo é dito, nem tudo é percebido. Além do diálogo e da amizade, é preciso estar atento aos sinais. Talvez tenha faltado um pouco dessa percepção à Márcia. Mas não há razão para condená-la pois, como já escreveu Guimarães Rosa: “o correr da vida embrulha tudo”. E ninguém correu tanto quanto ela...
Encerro esta resenha te convidando à leitura dessa bela obra, que é o início de uma trilogia. Mas antes, quero que ouça, aí no seu coração, a voz de Sophia expressando a mais poética e verdadeira sabedoria que poderia brotar de seus jovens lábios:
“Vitória não é só dinheiro. Vitória é você nunca desistir da luta. Vitória é lutar e conseguir. Não conseguir o que os outros esperam de você, mas o que você espera de você mesmo.” (pag. 334)
Título da Obra: O Menino que Via as Mulheres – Livro I
Autor: José França
Editora Literíssima, 2025
ISBN: 978-65-5079-514-6
Nº de páginas: 490
Foto do livro para a resenha: Jefferson Lima