Jefferson Lima em Prosa & Verso
"perceberás a maciez por baixo desta pedra... para uns tosca, para outros, preciosa "
Textos

As Veredas Rosianas, os Nossos Sertões e uma Canção do Roberto

 

 

Faço parte de um grupo de leitura dirigida e, no momento, estamos lendo O Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Um clássico da literatura brasileira, considerado um livro difícil por grande parte dos leitores. Ao mesmo tempo em que é desafiador, é uma obra de beleza ímpar, uma prosa poética de inigualável valor!

 

O livro, que tem como pano de fundo o amor platônico entre os jagunços Riobaldo, narrador da história, e Reinaldo, o Diadorim, traz à luz os tempos em que bandos de jagunços atuavam nos sertões brasileiros, muitos em relação de serviço com coronéis, fazendeiros e até líderes políticos, numa estratégia de guerrilha: “num constante avançar e retroceder, despachando sempre alguns tiros, mas jamais se mostrando face a face”, nas palavras do paraibano Milton Marques Júnior, mestre e doutor em Letras e professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

 

A narrativa se passa durante a República Velha, no sertão que corta os estados de Minas Gerais, Goiás e Bahia, e traz, na riqueza de detalhes das belezas naturais, muito mais do que simplesmente um cenário para os acontecimentos; é uma natureza que interage ativamente com os personagens, seja através dos cantos dos pássaros, da singularidade dos tipos de solo de cada região ou dos sinais de fontes de água próximas.

 

Voltando ao grupo de leitura, numa discussão, alguém fez uma relação entre uma das passagens do livro e a situação climática do Brasil atual, de calor excessivo e ausência de chuvas na região central do país, enquanto, na região Sul, as águas caem em proporções diluviais. Isto posto, uma das integrantes postou um vídeo que trazia um cientista da Universidade de São Paulo (USP) fazendo uma explanação sobre mudanças climáticas.

 

Tudo a ver, não é mesmo? Só que não!

 

O cientista havia sido convocado pelo atual presidente da República, e seu discurso de vinte e dois minutos foi proferido no Palácio do Planalto, numa reunião com representantes dos três poderes. Isso bastou para entornar o caldo e exaltar os ânimos. O grupo se enveredou por uma discussão que ignorava completamente que o teor do vídeo se tratava de um recorte da fala do cientista, sem qualquer menção aos políticos presentes.

 

Neste contexto polarizado em que vivemos, instaurou-se um debate sobre a postagem, ou não, de conteúdo político de um vídeo que quase ninguém havia assistido, por causa da foto que estava na capa, que mostrava o ambiente da reunião com a figura do presidente. Prefiro não relatar aqui os jargões usados nas réplicas e tréplicas, onde se definiu pela proibição de conteúdo político no nosso grupo. Vale lembrar que toda dedução era exclusivamente pela capa do vídeo, e não pelo seu conteúdo real.

 

Tal fato me chamou a atenção para os vales do nosso sertão existencial, onde temas necessários se tornam espinhosos e, ao mesmo tempo, completamente irrelevantes ante as bandeiras ideológicas. Falta-nos serenidade para conversar sobre assuntos diversos sem nos ofender. As ideologias políticas, as identificações de crença, a diversidade dos relacionamentos e a pluralidade de pensamentos estão motivando a formação de nichos e a propagação da intolerância.

 

Ouvir o outro com respeito e atenção, contrapor sem ofensas e sem intenção de persuadir, respeitar o modo de crer, de se relacionar e de viver do outro, entendendo que o mundo é diverso, são atitudes que trazem paz às relações interpessoais, nos levam a melhorar como indivíduos e enriquecem o debate em busca do bem comum, que é o principal objetivo das comunidades.

 

Meu desejo é que cada novo dia nos traga uma oportunidade de aprender com as diferenças, que possamos encontrar no diálogo as veredas de águas frescas que nos levarão à capacidade de refletir sobre certo ponto de vista e, ainda que discordemos, seja possível expressar a nossa opinião com a consideração de quem reconhece que, na soma de nossas individualidades, crescemos.

 

Como diz uma linda canção do Roberto: “Se as cores se misturam pelos campos, é que flores diferentes vivem juntas”.

 

Texto escrito para a coluna A Poética do Olhar, do blog Bendita Existência (www.benditaexistencia.com.br).

(Imagem: Gerada por IA para esta postagem.)

Jefferson Lima
Enviado por Jefferson Lima em 26/10/2024
Alterado em 26/10/2024
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