Um dia
sentirás uma saudade que
de certa forma irá arder, apertar e
trazer um quê de sede, fome, ou
apenas um vazio tão denso, de
sentido concreto e definições abstratas
ao vasculhar os seus baús interiores em
busca de um resto de mim, talvez sinta o
aroma da última essência que ainda persiste
em impregnar as lembranças que se atrevem
a ressuscitar sem aviso prévio
quando de longe soar as notas de
um saxofone melancólico trazendo
consigo os versos de um poema amarelado,
deixado em algum canto da biblioteca
amadeirada, consumido por abjetas traças
quando de algum alto-falante soar a voz de
Bethânia ou a flauta de Madalena embalando a
voz de um Montenegro perdido em devaneios
buarquianos, que parecem querer retroceder os
degraus, os ponteiros e os grãos de areia do tempo
é bem provável que as capas empoeiradas sobre
as várias estantes de um cômodo vazio estejam a
guardar minha alma intacta, entre páginas que
nunca mais se abrirão aos olhos plácidos e úmidos
da vã esperança de que a pele reviva antigos arrepios
Imagem: arquivo pessoal do autor