Uma Estória e uma História para o Natal
No conforto das suas certezas, a História sentou-se ao fim da tarde para contemplar mais um pôr-do-sol. Estava à beira de um lago, olhando as montanhas à sua frente e, ao menos nesse momento, não pensando em soluções para os muitos conflitos e desencontros que se desenrolavam sobre os seus rastros.
Enquanto estava ali, respirando os ares e admirando as cores de mais um dezembro, chegou uma senhora, que pelo visto já estaria no fim dos seus dias, e sentou-se ao seu lado. Respeitosamente, dirigiu-lhe a palavra:
─ Boa tarde, como vai?
─ Boa tarde. Não posso dizer que estou exatamente bem, mas assistir a este pôr-do-sol me deixa feliz. Como vai a senhora?
─ Estou bem e posso dizer que estou feliz por encontrá-la aqui. Talvez não esteja me reconhecendo, porém eu sei quem é você.
─ Já nos conhecemos em outra época?
─ Sim, querida História. Eu sou a Estória e, como vês, estou vivendo um dos últimos entardeceres da minha existência. Creio que nosso encontro é providencial, porque preciso muito conversar com você antes de partir.
─ É claro que me lembro! Percebi a sua ausência quando os seres humanos passaram a me invocar para endossar os seus sonhos, fantasias e fábulas. Achei estranho, no entanto, como sempre, tive a certeza de que na minha caminhada as coisas acabam por se esclarecer, esperei. Acho que chegou a hora de você me dizer o que aconteceu para que transferisse para a minha pessoa a sua responsabilidade.
Espero que não se ofenda por tratá-la de você. Ao longo da existência, já compartilhamos ocasiões suficientes para termos tal intimidade.
─ Deixa de cerimônias! Fico lisonjeada pelo tratamento.
Essa escolha não foi minha. Foram eles que decidiram me abandonar e me deixar morrer por falta de utilidade em suas vidas. A gravidade da realidade que trazes em teus rastros fizeram com que perdessem a fé em mim. Não perceberam que as minhas fábulas e absurdos traziam em si as lições que os ensinariam a lidar melhor com as coisas concretas da aventura de viver. Me chamaram de inútil, disseram que eu só fazia confundir as suas mentes e, de vez, me abandonaram. Uns e outros ainda me procuram, mas são poucos e não produzem energia suficiente para manter a minha vitalidade.
─ Isso é ruim. As coisas pioraram bastante desde que você deixou de atuar. Se você partir, preciso saber como agir diante de tanta crueza da vida sem sonhos. Você tem algum conselho para me ajudar?
─ Veja bem, minha boa amiga. Estamos aqui, olhando o sol se despedindo no horizonte. Essa mistura de cores, o canto dos pássaros e o som do vento nas folhas das árvores me remetem a tempos lúdicos, de simplicidade e sabedoria.
Neste mesmo cenário, quando ainda me aceitavam entre eles, nas tardes de dezembro os pais e os avós sentavam com as crianças e lhes falavam sobre o Natal. Eles contavam sobre a estrela brilhante no céu, sobre a criança deitada na manjedoura e sobre os reis magos que, seguindo a estrela, levaram presentes e adoraram ao Menino Deus. Passaram várias gerações e eles começaram a contar sobre um velhinho do Polo Norte que saía a distribuir presentes para as crianças num trenó puxado por renas. Até aí estava tudo bem. Eu mesma vi várias pessoas se vestindo de Papai Noel para entregar presentes às crianças nos becos e vielas – presentes esses que eram arrecadados especialmente para a data. As crianças ficavam felizes, super empolgadas ao receber um presente. Era comum que as crianças de famílias mais abastadas recebessem os presentes dos próprios pais ou parentes e esses presentes eram deixados sob árvores de mentira, enfeitadas com bolas e luzes coloridas. Em ambos os casos, a mensagem era de amor. Levar presentes embrulhados em carinho e fantasia era uma forma de manter-me viva e, ao mesmo tempo, sensibilizar as pessoas. O Natal era um dia para celebrar a união e a partilha.
─ Como isso mudou?
─ Antes, o Papai Noel passava nas carroças ou nas carrocerias dos automóveis jogando balas e acenando para as crianças. Logo a seguir, parava numa praça, abraçava os pequenos e tirava fotos quando havia uma máquina fotográfica disponível. Tudo se alterou quando levaram o Papai Noel para dentro dos Shopping Centers. Tudo ficou diferente. Lá, o bom velhinho foi proibido de abraçar todas as crianças. Só recebe o colo, o abraço e a foto desejada, aquela criança cuja mãe primeiro passa no caixa e paga o ingresso.
─ E as fábulas? Ainda falam sobre o trenó, a rena, a estrela ou sobre o bebê na manjedoura?
─ Que nada! Só os mais velhos lembram das estórias. Hoje, tudo são histórias reais. O menino que mora atrás daquela montanha sabe que não irá ao shopping ver o Papai Noel porque o pai só ganha o suficiente para não deixar faltar a comida em casa. Com um pouco de sorte, vai ganhar um presentinho para não passar vergonha perto das outras crianças. Mas a maioria das outras crianças também vivem na mesma situação. Para muitas, só de ter um pedaço de carne no almoço já será um belo presente.
─ E como poderei eu reverter esse quadro tão cruel que você está descrevendo, se não estará mais aqui?
─ Você vai mostrar a essa gente que a História tem poder para ressignificar a Estória. As estórias são atemporais e ganham novos contornos históricos no chão da vida.
─ Parece interessante esse ponto de vista.
─ Eles não precisam acreditar no menino da manjedoura. Eles não são obrigados a crer que pastores viram um coral de anjos. Não será necessário buscar teorias para explicar três reis magos guiados por uma estrela ao longo do deserto. Menos ainda acreditar que um tal São Nicolau era o velhinho que saía num trenó puxado por renas levando presentes.
─ Agora eu já estou achando que você está mesmo uma velha gagá. Se eu retiro todas as estórias, como fica a história?
─ A história fica com a essência de todas as estórias. Basta explicar que o amor precisa ser espalhado em qualquer dia, não precisa nem esperar dezembro chegar. Faça com que entendam que cada coração é uma manjedoura onde o menino Deus pode nascer e, a partir daí, o amor será espalhado em tantas formas quanto forem possíveis.
─ Uau!
─ Às vezes o amor irá em forma de um carrinho, de uma boneca ou uma bicicleta. Outras vezes, ele chega numa mochila cheia de cadernos e lápis de cor. Há casos em que o amor chega num almoço especial ou na compra de alimentos para um mês inteiro. Há pessoas enfermas, para as quais bastaria um abraço, uma visita, uma palavra, um olhar. Há crianças que precisam de um novo lar e esse presente dará novo sentido a uma vida inteira. O pai que olha o seu filho pedindo um brinquedo e não pode comprar, precisa acreditar que será capaz de conseguir um emprego e ver os olhos orgulhosos da criança que o abraça no final do dia. Para a namorada, um beijo, uma flor e um bombom podem ser mais valiosos que uma joia rara.
─ Eu estou aqui ouvindo e até concordo com as coisas que diz, mas acho tudo tão para além da realidade que trago em meus rastros... Não sei se vou conseguir tal façanha. A raça humana é formada, em sua maioria, por pessoas que causam danos à sua própria espécie.
─ Não desista! Eles são seres afetivos também. No fundo, são bichinhos carentes e acuados. Na busca pelo poder, eles conseguiram transformar as suas datas comemorativas em oportunidades de lucro, por isso, caí em desuso e as fantasias perderam o sentido.
─ Estou entendendo. Talvez precisem voltar aos livros e reaprender a razão das comemorações e o significado das datas especiais. Há muitos abandonados pelo meu caminho.
─ É um bom começo e pode ajudar. Se eles voltarem a ler os poetas, terão os seus corações amolecidos e a alma será revigorada por uma nova brisa. Pode ser que até esqueçam a importância das datas comemorativas, porém, se lembrarão do quão importante são uns para os outros e os gestos poéticos se multiplicarão entre eles.
Outro dia vi um poeta escrevendo um conto de Natal. Era um conto poético para o qual deu o nome de O Presépio do Menino Invisível*. Do fundo da sua alma ele buscou o realismo fantástico na vivência das pessoas que não têm acesso ao Noel do Shopping, mas que trazem dentro de si uma luzinha de esperança piscando fraquinha, mas o suficiente para ter fé no irmãozinho Jesus deitado no pequeno presépio.
─ Assim você me deixa muito sensível! Vou seguir os seus conselhos. Se der certo, a minha trilha será menos marcada por guerras, conflitos, sangue e ganância.
─ Agora sei que posso seguir tranquila. Adeus, amiga.
─ Adeus, minha boa e velha companheira.
E enquanto a Estória desaparecia na penumbra do entardecer, a História ficava só. Agora, não mais responsável só pela dura realidade da vida, porém, estava motivada a ensinar aos homens que há um caminho possível para viver em paz. E começaria já, pelo Natal que se aproximava, espalhando cores que inspirariam os poetas e amoleceriam os corações dos homens.
* Referência ao conto de autoria do escritor Mauro Brandão.
Imagem: Gisely Poetry