Papo de Mesa
Estou aqui: gasta, silente, sem beleza, mas limpa. Encostada num canto.
Não sei há quanto tempo aqui cheguei. Já se passaram muitos acenderes e apagares de luzes desde o dia do tombo na floresta, quando a motosserra me atravessou na base e podou os meus galhos... Depois, a viagem, ainda em dor, numa carroceria velha junto a outras de minha espécie...
Tenho vagas memórias do processo impiedoso que cortou pedaços do meu tronco, que em seguida foram aplainados, lixados, medidos e pregados para que ganhassem a forma atual, com dois pares de colunas que, unidas e perpassadas por um metal cilíndrico de cada lado, permitem que eu seja dobrada sem esforço e, sobre estes, uma base de 60 x 60 cm, a 70 cm do chão, que serve de apoio para objetos e braços. Concluído todo o procedimento cirúrgico, foi espalhado por toda a minha extensão uma resina que fechou os meus poros, preservando-me assim para a nova vida que levaria a partir de então. Sou uma mesa.
A segunda viagem era curta e ocorreu sem traumas. Foi na carroceria de uma moderna caminhonete que cheguei ao restaurante simples, na esquina de uma rua movimentada, acompanhada de outras 19 mesas que comporiam o ambiente do salão. Sem que houvesse uma razão específica, aleatoriamente, fui colocada neste canto, que fica mais afastado do balcão, não muito perto da porta de entrada e um pouco isolada das outras mesas.
O que a princípio poderia ter sido ruim tornou-se a riqueza de uma experiência existencial e filosófica que, então, passo a narrar.
Desde o dia que fui amputada das minhas raízes e tive as minhas folhas desprezadas, alimentei ódio dos seres humanos. Não compreendi – e ainda não compreendo – quais motivos levam um ser vivo a destruir outro com tanta satisfação.
Durante todo o processo de mutilação pelo qual passei sofri pelo fato de ser indefesa e não ter meios de vingar aquele ato. Não entendia como as mesmas pessoas que sentavam à minha sombra e tatuavam em mim os nomes de seus amores, agora me negavam o prazer da liberdade de roçar e entrelaçar os galhos da minha copa com os galhos das outras árvores, abrigar ninhos felizes com seus cantos e dançar ao vento, atraindo as nuvens que choviam sobre nós.
Entretanto foi aqui, neste restaurante de uma esquina qualquer, que comecei a compreender as ambiguidades dessa gente. Recolhida no meu silêncio, me faço cúmplice, ouvinte, compreensiva. Aqui, essa gente celebra suas alegrias, com as quais nem sempre compactuo, e derrama na madeira as suas lágrimas, pelos motivos mais variados.
Ouvi muitas histórias de amores não correspondidos de homens e mulheres que chegam desiludidos, acumulando garrafas e lamentos sobre minhas ripas. Há os que foram traídos, os que não seguraram a onda da fidelidade, os que perderam o grande amor de suas vidas por descuido ou displicência, como diz a letra de uma música cantada noite dessas por aqui. Choram, bebem muito e agem como bichinhos indefesos, independente da pompa com que adentram ao ambiente.
Algumas pessoas escolhem um local específico para frequentar e sempre se assentam na mesma mesa, então posso acompanhar o desenrolar de algumas histórias e formular melhor as minhas opiniões sobre os meus clientes tradicionais.
Chega um casal. Acabaram de se conhecer. Pedem um vinho, trocam juras de amor eterno e beijos apaixonados, riem de tudo e cantam juntos qualquer música... Me lembro de quando eu me envergava ao vento, cheia de malícia, para entrelaçar os meus galhos na árvore ao lado... fazíamos chover folhas e sementes no solo, onde brotariam as nossas mudinhas... Passam as semanas, os encontros se sucedem e os beijos já não são tão ávidos. O vinho dá lugar a bebidas mais populares e a conversa leve é substituída por planos, contas a pagar, como fazer para conseguir isso ou aquilo. Não raro, uma discordância qualquer termina em briga, seja por ciúmes ou pela resistência de um às cobranças e exigências do outro.
Não demora muito tempo e eles voltam, agora em dias diferentes, a frequentarem o meu cantinho com outras companhias, a fim de desabafarem as angústias e desilusões. O número de copos esvaziados vai aumentar, o sorriso vai se apagar, a fila vai andar e o ciclo vai se repetir.
Esses humanos sempre arranjam um motivo para sofrer. Não sei se gostam, se estão acostumados ou se não sabem fazer diferente. Sofrem por não serem aceitos na própria família ou na comunidade de fé. Eles mesmos constroem as cercas que os separam e se adaptam com facilidade às suas prisões como condição existencial. Eles não aceitam as diferenças naturais que existem na sua própria espécie.
Percebo que as pessoas gostam quando há música ambiente no início da noite. O movimento aumenta e elas permanecem por mais tempo. Noite dessas tinha um rapaz tocando violão e cantando algumas canções populares no canto oposto de onde fico. Ele anunciou uma canção “do rei”. Uma parte da letra me chamou a atenção:
...
se as cores se misturam pelos campos
é que flores diferentes vivem juntas
e a voz dos ventos na canção de Deus
responde todas as perguntas
...
Ora, se eles têm um “rei” que disse essas coisas tão simples e óbvias para mim, que desfrutava dessa verdade, como não compreendem? Por que não se aceitam, se entendem e se ajudam nas suas necessidades mais básicas?
É muito triste que a maioria dos assuntos sobre as minhas fibras se resumam naqueles papéis numerados, ou plásticos retangulares, que eles chamam de dinheiro: os amores tornam-se em ódio, as amizades são desfeitas, as parcerias são quebradas, assassinatos se justificam, trapaças são planejadas e até os líderes espirituais convencem os pobres fiéis que a divindade só abençoa a quem entregar o vil metal. Quanta contradição!
Gosto mesmo é quando chega família grande ou um grupo de amigos barulhentos. Nestas ocasiões algum garçom costuma me unir a outras mesas e o clima é de festa. Haja líquido para molhar tantas palavras! Ninguém consegue ouvir o cantor, as gargalhadas tomam conta do salão e vários assuntos são tratados ao mesmo tempo: comemoração, desabafo, zombaria, piadas sujas, saudade de quem não veio e até aquele “falar mal” de quem não está presente para se defender, seja por inveja ou por estar bêbado mesmo. Sinto-me orgulhosa por contemplar e conseguir ocultar as danças de alguns pés indiscretos.
À medida que vou perdendo o verniz e os meus poros conseguem absorver mais conhecimento sobre os humanos, constato que essa gente não é mesmo normal.
Fico ouvindo as queixas sobre os governantes que eles mesmos elegem para legislar sobre seus direitos e deveres. O indivíduo se apresenta como candidato e promete melhorar a situação da cidade, do estado ou até do país. Eles então escolhem o tal cidadão para representá-los, mas, depois de eleito, descobrem que se tratava de um mentiroso que, na verdade, só queria privilégios pessoais, traindo assim os seus eleitores.
O que afrouxa os meus pregos é que essa gente se divide entre os que acusam e os que defendem o traidor, como se fosse possível haver duas formas antagônicas de fazer o bem à mesma espécie. Então cada grupo cria a sua verdade e constrói a própria narrativa, na tentativa de ganhar adeptos e seguidores numas maquininhas que gostam de usar o tempo todo. Ainda não compreendi como esses aparelhos funcionam, mas vou descobrir.
E ainda não chegamos à marretada final...
O que mais consome o meu brilho e me deixa fosca, feia e de pernas bambas são os torcedores que chegam para assistirem, através da tela que fica no meio do salão, a uns homens correndo atrás de uma bola num campo verde com umas linhas brancas desenhadas. Geralmente nesses dias eles se organizam em duas torcidas, identificadas pelas cores das camisas que estão vestindo. Eles não compartilham a mesma mesa. Novamente me lembro que essa gente não sabe que cores diferentes vivem juntas...
Lá na tela, os jogadores vestem camisas iguais àquelas das pessoas no salão. Eles correm na tentativa de colocar a bola dentro da trave do outro time e, quando conseguem, eles celebram entre os da mesma equipe. Quando o jogo acaba, independente de quem tenha conseguido a vitória, eles não brigam, pelo contrário, eles conversam, fazem trocas de camisas e saem do campo conversando. Já no salão do restaurante...
Os torcedores se transmutam nas piores criaturas que conseguem ser: gritam, atacam quem está com a camisa de outra cor, se ofendem, quebram garrafas, cadeiras e até eu já tive uma das ripas repregadas porque me arremessaram para o outro lado do salão, como se mesas e cadeiras fossem armas. Houve noites que terminei toda suja de sangue desses animais nada racionais.
Aqui do meu canto, recolhida à minha insignificância de mesa, ainda não compreendo tanta estupidez dos homens que entram na floresta para nos sequestrar, para queimar as matas e matar os animais. Porém, com o que restou de mim, posso contemplar como falta humanidade a este ser complexo que não se entende entre os seus próprios pares.
Esta criatura que enxerga no seu próprio Criador um inimigo, para tornar-se humano precisa reconciliar-se consigo mesmo, revendo os seus princípios para então, a partir de si, buscar ter comunhão com os outros seres do seu ambiente.
Enquanto isso, espero o meu fim, talvez como lenha em alguma fogueira, ou, se tiver sorte, ser transformada pelas mãos de um artista.
Hoje à noite, bem que eu gostaria de testemunhar um encontro de amor, regado a um bom vinho, beijos molhados e conversa baixa, enquanto o rapaz do violão entoa uma canção do Vander Lee...
Ilustração: Gisely Poetry