Meu Grito
Obrigada por me receber. Agendei esta sessão porque precisava de um lugar onde pudesse deixar fluir tudo o que está represado. Aqui eu posso. Bom, acredito que posso, não é mesmo? Eu preciso confiar que você vai me ouvir sem julgamentos e que as paredes desta sala são tão surdas, quanto mudas.
Ah, antes de falar o que me traz aqui, você se importa de me dar um copo d’água? Acho que vou precisar molhar a palavra de vez em quando.
Agradecida.
Fui criada numa boa família. Bons princípios, bons ensinamentos, frequentei uma boa escola e cresci sonhando com uma vida feliz e realizada. Achei que a vida adulta me receberia de braços abertos para uma deliciosa travessia que me conduziria a uma velhice digna e tranquila. Porém, na mesma proporção que os meus seios despertavam a exuberância da mulher que desabrochava, as cores dos meus sonhos se apagavam.
Tudo começou no início da minha adolescência, ainda naquela fase em que o corpo vai se modificando e a menina desajeitada começa a dar lugar à beleza da moça, ainda de forma meio esquisita. Você me entende, né? Foi nessa época que fui apresentada a um mundo cheio de restrições, julgamentos, observações e escolhas sem sentido.
A minha mãe, com ar preocupado e procurando demonstrar um amor zeloso, passou a alertar-me em relação às minhas amigas. Elas também estavam se transformando e não eram mais as meninas que eu conhecia desde pequena, brincando de bonecas e colecionando fotos de artistas. A partir de agora, era preciso classificá-las e nem todas eram boas companhias para mim.
“Cuidado! A mãe dessa menina que você fica de conversinha, está cada dia com um homem diferente, não pega bem pra você frequentar a casa dela.”
“Essa sua amiga não tem roupa para o tamanho dela não? Anda igual uma piriguete, se oferecendo pra tudo quanto é homem que fica quebrando o pescoço quando ela passa.”
“Não coma nada que aquela boazinha te oferecer na escola. A família dela frequenta um terreiro. Eles são macumbeiros e vão fazer um trabalho pra você. Fica esperta!”
E assim reduziu o número de amigas que iam à minha casa, pois, sem que eu nada dissesse, o olhar reprovador da minha mãe cuidou de afastar as “indesejáveis”.
Eu me calei. Afinal de contas, nossa mãe sempre quer o nosso bem. Aos poucos, fui me afastando das amigas que eu tanto gostava. Em relação aos meus amigos, ela foi ainda mais radical.
“Os meninos não prestam. Só vão querer aproveitar de você. Viu como aquele de brinquinho na orelha estava te olhando ontem na feira? Aposto que, se eu não estivesse com você, ele teria ido de conversa mole pro seu lado.”
“Olha só aquele cabeludo, que só anda de roupa preta. Vê se isso é jeito de homem!”
“Quando você arranjar namorado, tem que ser um igual ao seu pai. Sério, trabalhador e que frequenta a igreja!”
E lá se foram os meus amigos, restando apenas uns dois, que eram filhos de amigos próximos da família. Eu não queria decepcionar, então me calava. Não os enfrentava. Aos poucos me adaptei.
Conheci outras pessoas e fiz novas amizades, não muitas, mas sempre balizando as pessoas das quais me aproximava pela métrica moral da minha família. Mesmo assim, foi impossível não ter os desejos de toda jovem da minha idade. Eu queria ir para a balada, ir ao carnaval e ir ao clube com as amigas. Uma vez ou outra conseguia autorização para ir ao cinema e, depois do filme, é claro que dava um passeio antes de ir embora. Às vezes passava do horário e levava uma bronca da minha mãe e um sermão do meu pai.
Eu não retrucava. Ia para o quarto. Lá, no meu edredom, eu podia sonhar acordada.
Bobagens! Não eram “sonhos cabeludos”, não! Sonhos de viver com menos regras, só isso. Perdão, acho que estou rindo de nervoso. Mas como eram bons aqueles sonhos...
Eu queria fazer uma tatuagem. Pequena, aqui ó, perto do ombro esquerdo. Uma borboletinha, um galhinho de flor e umas duas notas musicais. Tá bom, parece nada a ver, não é mesmo? Talvez eu seja uma boba romântica. E daí? Entretanto não fiz a tatuagem. O meu pai falou que, na empresa que ele trabalhava, ninguém era contratado se tivesse uma tatuagem. Queimava o filme.
Ah, eu também queria um piercing no nariz. Aquela bolinha brilhando, bem pequenininha. Acho lindo! Mas também nunca coloquei pelo mesmo motivo. Medo de queimar o filme e eu não conseguir um emprego.
Minha maquiagem sempre foi bastante discreta, sem sombras coloridas nos olhos e sem batom vermelho, porque, segundo a minha mãe, realça demais a carne dos lábios e isso não é coisa de moça séria. As minhas roupas também eram bem-comportadas. Nada de decotes profundos ou saias curtas. Bom, pelo menos eu era bonita de graça e, por mais discretas que fossem, as roupas não conseguiam esconder das pessoas que eu tinha um belo corpo. Também não foi problema para que eu tivesse alguns poucos namoros fortuitos.
Eu sempre gostei muito dos meus pais. Eles eram ótimos. Me tratavam com muito amor e muito carinho. Nunca faltaram abraços, risadas e brincadeiras. A convivência era muito boa. Penso que existia um excesso de zelo, pelo fato de eu ser filha única.
No entanto, esse zelo todo tolhia as oportunidades que eu tinha de arriscar um pouco, de experimentar, de seguir as minhas ideias, ainda que fosse por um dia apenas. Você acredita que, até hoje, nunca tive coragem de tomar um porre? Mulher bêbada?! Nem dentro de casa! Ainda me devo essa...
Quando meu pai, através da minha mãe, ficou sabendo que eu andava meio aérea, demorando mais do que de costume para chegar do colégio, ele logo desconfiou que alguma coisa estava fugindo ao controle. Então, para não sofrer e não correr o risco de perder a linha, ele pediu para ela me tocaiar.
É bom deixar claro que o meu pai nunca me bateu. Ele sempre foi muito contido e preferia resolver as coisas na conversa. Sabe, aquela conversinha mansa, conselheira, cheia dos motivos de Deus, que de tão amenas te causam bloqueios involuntariamente consentidos? Então. Era assim lá em casa.
Com dezesseis anos, eu andava de paixonite por um rapaz da minha sala. Ele fazia parte de uma banda de pop rock e, além de vocalista, compunha algumas letras autorais, o que fazia dele um galã para nós, meninas prontas para a paixão.
Antes eu quero contar que, mesmo não sendo uma das meninas que, no dia a dia, se vestiam de forma mais provocativa, dentro da escola o uniforme que éramos obrigadas a usar, no turno matutino, nos igualava. Sendo assim, os meus cabelos pretos e longos, ─ sim, ainda estou me acostumando às luzes e aos cabelos curtos ─ a minha altura de 1,74m e as inegáveis curvas, que a calça jeans desbotada ajudava a denunciar, faziam de mim uma das meninas interessantes para os rapazes da turma. Nunca vou esquecer o dia em que aquele galã, poeta, cantor, de cabelos longos e desarrumados e barba ainda rala, me roubou um beijo, aproveitando que eu havia ficado um pouco mais na sala, terminando um cálculo de físico-química. A reação foi instantânea.
Minha mãe, em sua missão, um dia resolveu me seguir após o término das aulas. Ficou de tocaia, porque já fazia duas semanas que eu estava me atrasando para chegar em casa. Íamos para uma pracinha próxima ao colégio e ali eu vivia os vinte minutos mais felizes da minha vida, envolvida pelos braços do cara mais desejado pelas meninas da turma. Eu me sentia uma princesa sendo beijada por aquele príncipe dos meus sonhos.
E foi no meio de um beijo mordido, molhado e explícito, ao sol do meio-dia, naquela praça cheia de crianças, que ela gritou o meu nome. Não havia desculpas a dar.
Naquele dia fatídico, a acompanhei em silêncio. Da mesma forma, ouvi o meu pai, antes de me recolher. Sob o edredom, o meu choro era inaudível.
Virei uma subcelebridade no colégio. Tornei-me o assunto a ser encerrado quando, de alguma rodinha, eu me aproximava. Ele adorou a repercussão! Tornou-se "o cara"! Ficou ainda mais famoso e surfou na fama, falando coisas a meu respeito que nunca haviam acontecido.
Nos outros dias, fui à escola, porém não me pronunciei em relação às coisas que ele dizia. Me calei. Não nos falamos mais. Rompi o resto do ano como pude, já que, para o meu pai, era inaceitável trancar a minha matrícula numa escola tão conceituada. Eu que me endireitasse.
Para me redimir, passei a frequentar as reuniões do grupo de jovens de uma paróquia do meu bairro. Até que o grupo era legal. A pastoral do bairro trabalhava com os jovens temas de grande impacto social e fazíamos alguns trabalhos voluntários numa vila vizinha. Aos poucos fui enturmando e gostando de estar ali. Meus pais estavam felizes e recobraram a confiança em mim, então me resignei em função da paz familiar.
Em relação à minha escolha profissional? Não! Foi tranquilo! Não tive problemas. Aos dezoito anos eu acabava de entrar para a faculdade de química e pensava em seguir carreira acadêmica, quando aceitei a proposta de namoro de um dos rapazes que frequentavam o nosso grupo. Ele já tinha vinte e sete, era engenheiro civil e estava com uma condição já estabilizada, tanto profissional, quanto financeiramente ─ era no carrão dele que levávamos as doações e materiais necessários às nossas ações. Os quase dez anos de diferença não foram um obstáculo para a minha família, que o recebeu muito bem. Ele era um amor de pessoa para os meus pais e me tratava com carinho, tendo sido muito compreensivo quando, a pedido do meu pai, esperou que eu concluísse a graduação para então marcar o casamento.
Confesso que não estava apaixonada, mas, como diziam lá em casa, eu não podia perder aquele ‘partidão’. Não posso negar que foram cinco anos de um namoro gostoso, com passeios maravilhosos, finais de semana em cachoeiras, hotéis fazenda, praia. E quando preferíamos estar em casa, minha mãe se desdobrava para fazer os pratos preferidos do genro perfeito.
Acho que o fato de não estar empolgada com o tal “homem perfeito” era a manifestação do sexto sentido, que ignorei ou não soube identificar. Escuta só o resto...
Nos casamos. Como acontece com todo mar, o nosso mar de rosas também começou a ter as suas ressacas. A princípio, ele “pediu” para que eu parasse de trabalhar ─ eu havia começado a lecionar numa turma de Educação de Jovens e Adultos, próximo à nossa casa ─, dizendo que não era preciso, pois ele tinha condições de manter o nosso padrão de vida e eu teria todo o tempo livre para cuidar do nosso filho, quando este viesse. Aceitei a gentileza. Não concordei, no entanto, preferi não me manifestar, pois não queria me indispor com o meu marido.
Cinco anos se passaram. Os meus pais começavam a apresentar os sinais da idade e, como filha única, eu precisava cuidar de algumas situações necessárias para o momento. Eu não tinha recursos próprios para ajudá-los, por isto eu pedia ao meu marido e nem sempre era atendida de boa vontade. Até para os cuidados com o corpo e as vaidades de toda mulher, como roupas, maquiagem, salão, manicure etc., eu precisava pedir, mesmo sendo chamada de “gastadeira” em muitas das vezes.
Cada vez mais ele se mostrava um machista, que acreditava naquela mulher “Amélia”, que fica em casa, cuidando da organização e cozinhando, enquanto ele nunca tinha hora certa para chegar, porque estava sempre olhando uma obra da construtora. A essa altura do campeonato, eu não contava com uma amiga sequer com quem pudesse conversar, pois ele me falava que não era saudável ficar de conversinhas com mulheres que não tinham o que fazer, a não ser fofocas. Como de costume, eu me calava.
Cheguei aos trinta anos e não era nem sombra da menina de dezoito, que ele conheceu nos projetos sociais da pastoral. A insegurança natural que chega com a idade, em mim era potencializada pelo sentimento de inutilidade, pela solidão, pela desconfiança causada pelos horários incertos e as desculpas de trabalho, cada vez mais indigestas.
Aos trinta anos eu não sabia o que era falar, opinar, tomar posição quando necessário. Todos os meus silêncios foram se acumulando e já estavam a ponto de transbordar.
Já faz uns dois anos que a minha cunhada, super gente boa, ao chegar lá em casa e me ver nervosa e chorando muito, tirou da bolsa um comprimido para que eu tomasse e me acalmasse. Aceitei o remédio. Passei a comprar a droga numa farmácia, que me vende uma caixa por mês, sem receita médica. A sensação de bem-estar me fazia suportar calada e manter as aparências públicas, principalmente para os meus pais.
Não! Ele nunca me bateu, não! Nunca houve violência física. A violência que eu sofria era psicológica. Por que ele podia chegar do trabalho tarde da noite, com cheiro de bebida, com a camisa amarrotada, dizendo apenas que precisou ficar até mais tarde em reuniões ou visitando alguma obra, enquanto eu não tinha liberdade nem pra ir à casa de alguma amiga, conversar um pouco, cozinhar, beber alguma coisa? Isso vai matando a gente por dentro!
Vida social? Bom, só se casamentos ou aniversários de família entrarem na lista. E só. Não íamos a nenhum show, nem a um barzinho com música ao vivo, pra namorar, só nós dois. Nem aquela coisa de ir passear na pracinha, ver a tarde caindo e jogar conversa fora. Não havia nada disso! Os passeios, as viagens, foram apenas estratégias de conquista. Todo aquele castelo se desfez.
Parece que eu só sirvo mesmo para cuidar da casa e, vez ou outra, para satisfazer algum desejo dele. Saída? Não vi.
Mergulhei na tristeza. No escuro dessa minha vida, no silêncio da televisão ligada e nos espaços da minha casa cheia de móveis... Veja só que loucura, em poucos meses eu fiquei totalmente viciada nos comprimidos!
Uma prima, que eu não via há algum tempo, me encontrou num dia em que foi visitar os meus pais. Ela percebeu que havia algo errado e me pressionou, com tanto jeito, que acabei contando algumas coisas, quebrando o silêncio. Ela me encheu de coragem. Me aconselhou a falar, a colocar pra fora tudo que está aqui dentro.
Dandara marcou o salão para hoje cedo e, também, esse horário com a doutora. Sim, é o nome dela. Me pegou lá em casa, fomos ao salão, onde cortei e mudei a cor dos cabelos.
Estou bonita? Sério? Obrigada! Ainda estou me acostumando, como disse no início. Esta roupa, eu só tinha usado uma vez, já faz mais de um ano que a tenho. Comprei para irmos a um aniversário e eu queria estar linda, nem tanto pra ele, porém para me destacar entre aquelas chatas que estariam lá. Você sabe como é! Ele falou que, além de destacar muito os meus quadris, o decote também é exagerado. No fundo eu sei que ele ficou se roendo por dentro ao perceber que a morena aqui, desfilando nesse salto e nesse macacão amarelo, estava chamando a atenção dos amigos dele.
Já pensou, se eu já estivesse loira naquele dia? Ele ia morrer!
Vindo pra cá, a Dandara estava me dizendo que eu preciso me libertar, aproveitar que não tenho filhos, pois nem pra fazer um filho aquele infeliz tem competência, e pedir o divórcio.
Não, eu ainda não conversei com os meus pais, aqui é o primeiro lugar onde eu deixo quebrar o pote e derramo o silêncio da minha vida inteira. Nem para Dandara eu falei tudo. Entretanto eu sei que eles vão me apoiar. Até a minha cunhada vai ficar do meu lado. Tenho certeza.
Sério? Você acha mesmo que eu ainda consigo retornar aos estudos e retomar a minha profissão? Nossa, seria um sonho!
Entendi. Pode deixar, eu vou dar um jeito na minha vida e tentar ser feliz. Vou precisar muito da sua ajuda. Eu preciso aprender a falar o que penso. Aquela menina acuada, que ficava calada cresceu e eu preciso ressignificar a minha vida. Não quero ser como a minha cunhada, que carrega uma cartela de comprimidos na bolsa.
Ah, uma boa ideia! Acho que fazer aquela tatuagem vai marcar o início de um novo ciclo. A metamorfose. A saída da borboleta do casulo para pousar nas flores e dançar.
Na próxima vez que voltar aqui eu te conto as novidades. Não vai ser fácil, mas já dei o primeiro passo e não vou voltar atrás. Acho que depois da tatuagem, vou colocar o piercing também. Ou já estou velha pra isso? Não, não responda. Depois eu mesma vou decidir.
Antes de sair preciso recompor o meu rosto. Você viu? Boa parte dos meus silêncios saíram pelos olhos. Que vergonha!
Obrigada! Até a próxima.
Ilustração: Gisely Poetry