Cor-de-rosa Desbotado
Nascido em uma família de classe média baixa, protestante e natural do Vale do Aço mineiro, Jovaci teve uma ótima infância. Brincava na rua com bolas de gude, peladas no campinho de areia, polícia e ladrão e, claro, bicicleta. Na adolescência, a magrela virou meio de transporte para as cachoeiras da região, onde aconteceram seus primeiros encontros e as primeiras experiências de amor e loucuras entre as quedas d’água.
Jovaci também utilizava a bicicleta para ir trabalhar como ajudante na construção civil; trabalho este arranjado por um tio e que lhe garantia algum dinheiro para sair com a turma após o culto de jovens, que frequentava com assiduidade aos sábados. Se exibir na bateria durante os cânticos garantia algum sucesso com as meninas que frequentavam a igreja.
Na escola, o Jova, como era chamado pelos amigos, não era um mau aluno, tampouco era o destaque da turma. Se esforçava o suficiente para garantir a nota média e não passar vergonha por ter sido reprovado. A vida apertada, o trabalho pesado e o quarto dividido com mais dois irmãos não propiciavam uma condição adequada aos estudos. Por dom, era profícuo em cálculos e raciocínios lógicos, porém, em contraponto, não ia bem em linguística, humanas e conhecimentos gerais, áreas estas que não lhe despertavam nenhum interesse. Não gostava de estudar história porque não percebia em que lhe poderia ser útil saber o que as pessoas fizeram nos anos passados. Políticos, então...
Ele não era nem capaz de se lembrar em quem votou, tendo passado apenas uma semana das eleições. E daí? Aqueles políticos que aparecem na televisão ‘é tudo uns ladrão’! ─ repetia.
Jovaci não tinha interesse pelo noticiário, nem pelos acontecimentos à sua volta. Os únicos assuntos sobre os quais procurava se atualizar eram as variações mais iradas para executar na ‘batera’ ou os acessórios da moda para incrementar o seu Voyage azul 1992, que fazia o maior sucesso por estar sempre com a lataria brilhando e o painel todo cheiroso.
Também não buscava compreender os fundamentos da religião nem as premissas da igreja. Sabia de cor o Salmo 23 e a oração do Pai Nosso, aprendidos ainda na infância. Por conveniência, sabia o primeiro versículo do Salmo 40, pois quando a irmãzinha caía na sua lábia depois de alguns ‘foras’, ele sacava dos versos do salmista a razão da sua conquista: Esperei com paciência no Senhor...
No fundo, a relação de Jovaci com a igreja ia além da música e da exploração de versículos ocasionais. A igreja exercia sobre ele uma forte dependência psicológica e emocional. Até mesmo por não ter uma percepção apurada dos fatos, acreditava piamente que o seu pastor era um ‘homem de Deus’ que só falava a verdade. Com sinceridade, cria que aquele homem de terno bem cortado, de carro novo, ganhado no último aniversário através de doações dos membros da igreja, que exibia um vocabulário bonito, apesar de nem sempre compreensível, ouvia a voz do próprio Deus. E assim Jova internalizava tudo que ecoava pelos alto-falantes do templo. Era fiel nos dízimos e seguia, sobretudo, a orientação dada em anos eleitorais, que era escolher os candidatos indicados pela igreja, tanto para a prefeitura, quanto para a câmara dos vereadores. Era importante eleger um ‘irmão’ para que a ‘obra de Deus’ pudesse ser duplamente abençoada.
Como todo jovem do interior, Jova sonhava em sair de casa, então chegou o dia em que arranjou um emprego numa grande construtora e mudou-se para Sabará, uma cidade próxima à capital. Com a mudança para uma região de grande movimento e com muitas tentações, casou-se logo com uma das moças mais belas da sua igreja e a levou para a Grande BH.
Corria o ano de 2005. Jovaci estava feliz. Solange, sua linda esposa, estava bem habituada à nova vida e se destacava na comunidade pentecostal que frequentavam. Prendada em bordados e estando numa cidade de tradição histórica, não foi difícil garantir uma renda extra, que possibilitava frequentar as lojas da capital e o salão de beleza. Juntos, conseguiram economizar e dar a entrada no financiamento do primeiro imóvel. Um bom apartamento, de um dos empreendimentos da construtora em que Jovaci trabalhava. Na mesma época, foram abençoados com o nascimento da pequena Laura.
Os anos passavam e Jovaci, bom profissional, tornou-se mestre-de-obras. Trocou seu velho Voyage 92 num Pálio 2015, enquanto Solange tornou-se bordadeira de uma confecção, com carteira assinada e direitos garantidos. Laura, então com treze anos, estava ansiosa com a chegada de 2020, quando completaria quinze anos e seus primos viriam da pequena Jaguaraçu para uma grande festa. Já havia até um sítio reservado. Nestes dois anos que faltavam, era preciso se dedicar aos estudos e fazer por merecer, pois tudo que seus pais faziam era com muito sacrifício e um controle rígido das finanças.
Era também ano de eleições presidenciais e o país pegava fogo. Jovaci e Solange não entendiam o porquê de a igreja não apoiar os candidatos evangélicos. O pastor explicou que eram ‘falsos cristãos’, que um deles era um maluco, que só sabia dar “Glórias a Deux” ─ puxando um X no lugar do S ─, enquanto a candidata que parecia centrada, coerente e até boazinha, era a própria serpente, que queria enganar os crentes, liberando o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Elegeram então o candidato mais sério, que tinha Deus no slogan de campanha, não se sentava à roda dos escarnecedores nem para debates e encerrava seus discursos citando o texto bíblico de João 8:32, além de ter sido batizado no Rio Jordão, lá em Israel, terra santa. Os sonhos de Deus estavam se cumprindo.
Por orientação do pastor, influenciado pelos amigos das redes sociais e por acreditar nos tais sonhos de Deus, Jovaci eliminou um canal de televisão das noites da família. Tal canal, cujo nome já subentendia uma conjunção universal, era a pura representação da besta do apocalipse. E não adiantava os argumentos de Laura, que já mostrava ter opiniões próprias, pois o pai dizia que a casa era sua e exigia respeito.
A família seguia em paz e festejou muito a chegada de 2020. Ano dos quinze anos...
Todavia, em meio a tantos sonhos e expectativas, o novo ano também trouxe a pandemia do coronavírus e modificou a vida de todos. A construção civil estagnou e Jovaci ficou desempregado. A confecção se manteve por causa das encomendas de máscaras, entretanto Solange teve o salário reduzido na mesma proporção que a sua jornada de trabalho. Laura passou a ter aulas online, já que a escola também foi fechada. E lá se foi o sonho da festa de debutante! Tempos incertos...
Os noticiários ficaram tensos. Até aqueles telejornais que tentavam maquiar as notícias não conseguiam mais esconder os borrões. Bem-informada pelas muitas notícias que buscava além da TV, Laura tentava mostrar aos pais a gravidade da situação, porém não adiantava.
Jovaci não via necessidade para isolamento social e muito menos para o fechamento do comércio. Desdenhava dos números e achava que tudo era uma conspiração para derrubar o presidente. Reproduzia aos quatro ventos os jargões que escutou na fila da Caixa Econômica Federal e culpava o prefeito por não permitir a abertura da igreja. Se tem um vírus, a culpa é da escola de samba que levou um Jesus gay pra avenida. É o juízo de Sodoma e Gomorra.
Solange era sensível aos argumentos de Laura e sabia distinguir entre notícias reais e boataria, no entanto não conseguia externalizar suas próprias ideias. Ela acabava dando razão ao marido, afinal, quando se casaram, o pastor disse que o homem era o líder da casa.
Jovaci andava impaciente, ríspido, beirava a agressividade. Pelo celular, sua mãe tentava tranquilizá-lo. Solange não sabia o que fazer, entretanto compreendia o marido. Era tudo muito assustador. Laura também estava impaciente. Conseguia se adaptar, era antenada no mundo virtual, tinha hábitos de leitura e era um tanto quieta, porém, como todas da sua idade, sentia falta de encontrar as amigas, ver os rapazes e jogar conversa fora.
O clima das ruas ficou tenso. A crise política, que desnudou de vez a incompetência do presidente, somou-se à crise de saúde. O noticiário estava cada dia mais insólito. Jovaci ignorava, no entanto não via perspectiva de conseguir outro emprego tão cedo. Solange via a tudo muito assustada, insegura quanto ao futuro. Laura avaliava o cenário de uma perspectiva global.
Do alto dos seus quinze anos, Laura via que o rosa dos seus sonhos estava um tanto desbotado...
*Texto publicado na Revista Travessias Literárias Nº 4
Ilustração: Gisely Poetry