Para onde foram os meus dias?
Em qual temporal retornaram minhas lágrimas?
Por que há despedidas?
Ante a dor, silêncio ou blasfêmia?
Para as incertezas há respostas?
Dentre tantas perguntas, questiono
a razão de estarmos aqui.
Tudo se resume em produzir para ajuntar
e depois gastar o que se ajuntou para obter
outras coisas que outros produziram.
E vou estabelecendo juízo, criando conceitos,
adquirindo conhecimentos, questionando razões,
errando muito, acertando bastante,
segundo verdades que não estabeleci,
mas aceitei acreditar.
E onde estão aqueles que dizem deter o saber
e conhecer a verdade que apregoam?
O que os motiva a levantarem de suas camas todos os dias
e bolarem um monte de estratégias frágeis
para que outros acreditem em suas teorias?
E dá-lhe seminários bem estruturados!
Tantos passos para isso e outros tantos para aquilo e
um cara de barba farta e pouca quilometragem,
dizendo que descobriu o segredo do sucesso,
com discursos que só lhe ajudam e lhe enchem os cofres.
E por que eu, não estando inserido no mesmo contexto,
vivendo outra vida, compartilhando apenas do mesmo ar,
com as experiências que me são possíveis,
me sujeito a perder tempo lendo tais mestres
e tento moldar a minha vida a seus ensinos?
E me pergunto a razão de ser obrigado a escolher
um ser humano como eu para elaborar as leis que vão me cercear.
Dou créditos aos que prometem o bem para o bairro, para a cidade,
que juram melhorar as condições do estado
e garantir qualidade de vida à nação.
Mas a mesma mão que usam para afagar durante as campanhas,
usam para sacar as rolhas e brindar aos números de um extrato suspeito,
contabilizados em transações espúrias e paradisíacas.
Enquanto nos palácios, onde crescem em crassitude,
planejam o discurso que lhes garantirá a perenidade.
Às 4:30 da manhã o despertador me acorda,
preciso sair e pegar o ônibus das cinco e meia.
Encaro um dia tenso, desprovido de alegrias.
Quando retorno, a lua já está alta no céu,
a felicidade da filha e o sorriso da mulher me acolhem.
Nesses momentos de suposto arrebatamento
olho novamente a lua pela janela e nos identificamos.
Ambos brilhando, ambos aparentemente belos,
iluminados pela luz que nos chega
por quem, mesmo distante, se importa.
Assim, os dias de feira vão passando,
esperando um final de semana sem tragédias
para reunir os amigos e rirmos de bobagens.
Falando obscenidades e gargalhando com piadas sujas,
enchemos a cara de cana e chamamos a isso de felicidade.
Enquanto, no mesmo espaço-tempo, outros
penduram os seus ternos e se encontram em saunas e haras
para estabelecer acordos que, entre papéis e coquetéis,
decidirão o fatídico destino daqueles que, sorrindo,
pensam que o porvir não será mais que uma ressaca.
Consumo livros, revistas e artigos
que na mesma proporção, alimentam meu vão conhecimento
e aumentam a minha desilusão com os dias,
ao perceber que de pouca valia são
para abrir portas e encher a despensa.
Assisto às notícias que tornam o meu jantar indigesto,
ao ver a minha liberdade ameaçada porque
uma caricatura de Dom Quixote não quer voltar pra casa,
travando batalhas imaginárias, enquanto, num lugar do cosmos,
Rubem Alves e Paulo Freire constatam terem lutado em vão.
Qual será o futuro dos nossos jovens? Como competirão?
Qual a motivação para que algum deles se veja num professor a lecionar?
O ensino público, ao invés de orgulho, nos causa vergonha,
mas o ministro disse que a educação não é para todos
e já sabemos que há muitos interesses na ignorância de um povo.
O meu emprego anda ameaçado e começo a me sentir culpado
por ter permitido nascer uma filha neste mundo inseguro,
sem poder garantir que ela terá a oportunidade de sonhar
porque, tendo ela desenvolvido senso crítico, não sendo da classe dominante,
talvez no seu lugar de fala encontre a repressão da mordaça.
Ela já estará no lucro se dedicar o amor e entregar o corpo
aos prazeres de alguém que a ame com seus valores e paradoxos,
que respeite os seus sentimentos, os retribua com gestos felizes
e que trate a sua carne, não como aquela mais barata do mercado,
mas como iguaria que não se pode ferir.
Não vejo sentido em nada! E por que veria?
Todos dizem acreditar no mesmo Deus,
mas falam de deuses múltiplos, que me dão náuseas.
Divindades com crise de identidade
e delimitações éticas muito relativizadas.
Ainda trago ranços, marcas e trejeitos do passado protestante,
mas, também, uma gratidão imensa ao Eterno Pai
pela luz que clareou as minhas trevas
e me permitiu romper com as algemas da religião
a tempo de não me contaminar com o status quo.
Ando pelas ruas e tenho nojo
das muitas placas, da ostentação dos prédios,
que vendem um deus que não se doa e
oferecem um divino que aceita barganhas.
Um deus tão corrupto quanto seus emissários.
Ao ler os evangelhos, conheci um Jesus contracultura
que, indo a templos ou palácios, não se esquivava a
denunciar, revirar mesas e protestar contra as injustiças.
O Jesus que conheci não fazia rodinhas de orações públicas
com objetivo de encobrir conchavos de gabinetes e salas de jantar.
O Jesus que eu conheci sentava com maltrapilhos
para contar parábolas e dividir a refeição.
Não subtraía dos seus o que já lhes faltava e
quando ia a festas, era para estar no ambiente do povo.
Bebia, comia, dançava e conversava alheio às castas.
Como posso aceitar um deus egoísta de uma só crença?
Se há pluralidade de raças e mistura de cores,
por que não aceitar as múltiplas liturgias?
Cruzes, fogueiras, flores e oferendas
manifestam a diversidade deste mundo de Deus!
O povo de pele calejada ajoelha e pede
por um pouco de arroz e feijão no prato.
Essa gente acende uma vela por saúde sem consórcios,
por um trabalho que lhe garanta alguns direitos
e pelo bem da família nem sempre estruturada.
Pelo seu amor, oh Deus!
Onde estás enquanto essa gente se lasca?
Aqueles que exploram em Teu nome
se trancam em seus castelos quando o barranco desce
na chuva torrencial, soterrando os barracos.
Pode até aliviar a consciência fazer o sinal da cruz
quando, bem agasalhado, da janela do apartamento,
vê-se um ser humano encolhido de frio na calçada.
Benzer-se não vai resolver o problema. Mas fará diferença
se dispor a descer as escadas e abrir mão de um cobertor.
Observando as filas para receber a marmita de sopa na esquina,
fico feliz e tenho esperança no ser humano.
Há quem se ofereça para abençoar, para dedicar tempo.
Ali sim, está a verdadeira religião: mãos estendidas,
dando e recebendo, além do prato, um olhar.
Volto para ler os poetas, os filósofos, ouvir os músicos.
Expressões genuínas da alma e sua essência.
Vejo nas exposições a liturgia da contemplação
que retrata e denuncia, tanto a beleza
quanto a dura realidade do nosso cotidiano.
Penso que o lugar sagrado deva estar num sarau de muitas entidades,
onde cada artista incorpore o melhor espírito,
sem joelhos feridos na aspereza do concreto das escadarias,
mas que nos leve às lágrimas pela beleza dos versos cantados
e pelo calor dos abraços apertados.
Anseio por flores que exalam o melhor perfume e,
se algum espinho vier a ferir, que seja a oportunidade
para um beijo que cura, um carinho espontâneo
que, inesperadamente, pode fazer brotar um amor
sem cor, sem gênero, sem equações exatas a resolver.
Desejo crianças barulhentas correndo nas praças,
de cabelos desgrenhados, se divertindo nos chafarizes
e lambuzando a barriga desnuda de sorvete gostoso,
com aquela cara toda marcada de algodão doce.
A mais bela face do Sagrado a sorrir para converter adultos sisudos.
Quero saber contar as bênçãos dos meus dias,
imaginar o destino do sal que chorei e que a chuva não trouxe de volta.
Quero ao menos compreender as despedidas definitivas.
Ante a dor, silenciar ou dizer o mínimo para acalentar.
Não quero buscar respostas mágicas para as incertezas.