Doutor,
estou aqui nem sei o porquê...
Talvez para tentar conhecer
os vários seres que me habitam.
Todos, uma variação de mim mesmo
(como uma versão distinta do eu).
Cá estou eu,
sentindo-me como numa forca moderna.
Sob um céu de concreto tudo me parece cinza,
neste cubículo tudo é novo, mas meu conteúdo é idoso.
Devo dissecar, escancarar e esvaziar meu interior.
Correntes me confundem, algo particular me prende
e na ausência de algo peculiar não me identifico.
Travo. E tudo o mais que disser será duvidoso.
Não sei ao certo como te contar
que sou feito de tudo um pouco...
Habitam, lado a lado, bem e mal.
Doçura e perversidade coexistem,
entrelaçam-se, manifestam-se,
interagindo em Saara e sal.
Pinto estrelas em meu céu particular.
Saem de mim gotículas de um azul infinito
e volto a sorrir enxugando a teimosa lágrima...
Ainda há chance para o mundo que vejo!
E sigo a pensar que nem tudo está perdido...
Confesso-me metamorfose.
Um ser tranquilo e sensato, tempestade e ventania.
Um conjunto de contradições e certezas,
amor e ódio, carinho e desapego,
música e silêncio, razão e poesia...
Poesia... sou poeta!
Em mim habitam os mais lindos versos.
Também os piores pensamentos!
No meu coração tocam canções maravilhosas
e planos diabólicos são gerados.
Na minh’alma habita o sagrado.
Pelos meus poros escapa o profano...
Quem sou eu?
Sou as diversas imagens que penetram os olhos
daqueles que me olham de viés.
Anos de terapia e alguns fantasmas continuam aqui,
em algum lugar dentro do peito.
Acorrentados ou presos em um baú pesado como o mundo.
Baú em que guardo velhas canções, alguns amores,
vários fracassos, incontáveis erros e medos...
Muitos medos!
Algumas vezes preciso abrir o baú
e de lá escapam assombros do meu passado,
rememorando coisas que não quero lembrar,
ou que preciso esquecer...
Retiro de lá algum sonho
que ainda valha a pena reviver.
Olho de frente para aquilo que me assombra,
me machuca, me coloca em xeque.
A tua paciência me dá forças e alguma coragem para mantê-lo aberto
e olhar para dentro desse baú com autoridade.
Você me dá segurança, um norte.
Contar-te tudo isto é ver-me sem espelhos,
sem meia luz, sem metáforas, sem baús...
Só eu, você e meus amargos segredos!
Confesso...
Sou uma farsa! Um paradoxo!
Para cada um que se apresenta
ofereço o meu “eu” conveniente.
Sim... é isso... como diz o ditado,
‘a ocasião faz o ladrão’!
Já estou a desconfiar que possa estar vivendo
o conto do Sábio Chinês:
Estaria eu dormindo,
sonhando estar de frente para um doutor
ou seria eu o próprio doutor,
imaginando a mim mesmo como um paciente no divã?